É lamentável constatar a persistência de alguns vícios na gestão do setor público brasileiro, depois de tantos desmandos, problemas, impeachment de dois presidentes da República e apesar do crescente anseio da sociedade por mais lisura, transparência, extinção de privilégios e eficácia na aplicação do dinheiro dos impostos. Mais uma medida que fere esses princípios acaba de ser adotada pela prefeitura de São Paulo, que deveria dar o exemplo, pois é responsável pela maior e mais desenvolvida cidade brasileira e uma das grandes metrópoles mundiais.
Refiro-me à lei, de iniciativa do prefeito Ricardo Nunes, aprovada pela Câmara dos Vereadores, que concede generoso aumento salarial para os ocupantes de funções de confiança, não concursados na prefeitura. Como é comum na cultura do Estado em nosso país, o quadro dos chamados cargos em comissão é preenchido, em sua maioria, por pessoas que atuaram como cabos eleitorais, apaniguados dos governantes de plantão e até mesmo indicados por políticos na famigerada prática do tome lá dá cá.
No caso da lei proposta por Ricardo Nunes, essa nova aventura do fisiologismo custará caro à sociedade. O aumento salarial médio é de 30%, beneficiando subprefeitos, chefes de gabinete e secretários-adjuntos, dentre outros privilegiados, cujos cargos passam a ser atrelados aos vencimentos do prefeito, que, por irônica coincidência, saltará para R$ 35,4 mil a partir de janeiro de 2022, levando junto, às alturas, os proventos dos secretários municipais. São milhões de reais mensais do erário a serem gastos com os ocupantes desses cargos, cujo provimento, embora não seja ilegal, é bastante questionável do ponto de vista ético.
Em contrapartida, professores, profissionais da saúde, funcionários administrativos das escolas e unidades de atendimento à população e todos os demais servidores concursados estão há tempos com seus vencimentos defasados. Como se não bastasse, o prefeito também aprovou na Câmara Municipal lei determinando que os aposentados passarão, de imediato, a recolher contribuição acima do salário-mínimo e não mais apenas do teto do INSS. Isso significará redução de seus proventos líquidos.
Recursos que poderiam ser mais bem distribuídos, de modo mais democrático, num contingente maior de servidores concursados e focados no atendimento efetivo da sociedade, são concentrados para contemplar um pequeno grupo de privilegiados, que já ganha muito. Também seria desnecessário "punir" aposentados com a redução de seus proventos líquidos.
Diante de contradições tão ofensivas, reverenciamos a memória do saudoso humorista Chico Anísio, que completaria 90 anos em 2021, assim como a Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, que, como ele, nasceu em 1931. Os 250 mil associados da entidade e os profissionais de carreira da prefeitura paulistana repetem, em uníssono, a indignação do professor Raimundo, imortal personagem do grande artista: "E o salário, ó"!
Texto: Álvaro Gradim, médico pneumologista, é presidente da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo (AFPESP).
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